21 setembro 2012

Considerações sobre o curador especial no processo civil

Para o aperfeiçoamento da relação jurídica processual, a citação do réu é condição essencial, é um verdadeiro pressuposto de validade do processo. Por isso, o Código de Processo Civil entendeu necessário definir a citação e o fez no art. 213, com a seguinte redação: “Citação é o ato pelo qual se chama a juízo o réu ou o interessado a fim de se defender”.

Essa definição é alvo de críticas severas da doutrina, basicamente porque o réu não é chamado ao processo o propósito de apresentar defesa. Primeiro porque a apresentação de resposta é uma faculdade do réu, que estará sujeito ao ônus da revelia, mas não se obriga a apresentar contestação ou qualquer outra resposta. Segundo porque é possível o comparecimento ao feito com outros objetivos, como o de reconhecer a procedência do pedido do autor, por exemplo.

Assim, entendendo que a citação é apenas o ato de comunicação que informa ao réu que uma ação foi proposta e ele figura no pólo passivo da relação processual, o projeto do novo CPC tenta corrigir o equívoco redacional, definindo o ato assim: “Art. 195. A citação é o ato pelo qual se convocam o réu, o executado ou o interessado para integrar a relação processual”. Essa “integração” ocorre pela ciência dada ao réu, não por seu comparecimento efetivo aos autos.

Para que a citação possa cumprir sua função o legislador previu quatro modalidades: citação pelo correio, por oficial de justiça, por edital ou por meio eletrônico. As duas primeiras visam a entrega pessoal do mandado citatório ao réu ou quem o represente, no caso de pessoas jurídicas ou incapazes, por exemplo. A última ocorrerá em casos previstos na lei de informatização do processo judicial (Lei nº 11.419/06). Nesses casos é possível afirmar que a citação é real

A via excepcional do edital ocorrerá quando o réu for desconhecido ou incerto, quando o lugar em que se encontrar for ignorado, incerto ou inacessível e nos demais casos expressos em lei (art. 231, CPC). Trata-se de exceção à idéia da citação pessoal, porque dadas as circunstâncias especiais, não pode ser realizado pelo correio ou oficial de justiça.

Essa modalidade é classificada doutrinariamente como citação ficta ou presumida, porque haverá dúvida sobre a efetiva leitura do edital e numa eventual inércia do réu não se pode afirmar que foi escolha sua (já que é um ato voluntário) ou não o fez por não tomar conhecimento da publicação.

A mesma classificação é aplicada à conhecida citação por hora certa, regulada pelos artigos 227 a 229, do CPC. Nela o oficial de justiça nem sempre consegue citar pessoalmente o réu, limitando-se a intimar alguém da família ou vizinho da realização das diligências visando o cumprimento do mandado. Aqui também haverá dúvida se houve efetiva comunicação ao réu.

Em casos assim o CPC determina que o juiz nomeie curador especial para defesa dos interesses do revel citado presumidamente (art. 9º, II). Tal nomeação recai normalmente sobre um advogado que deverá apresentar contestação, ainda que suas alegações sejam genéricas, porque é natural que não possua elementos concretos para realizar a defesa do revel.

Há aqui uma verdadeira exceção ao ônus da impugnação específica que vigora entre nós para a contestação e exige que o réu impugne cada um dos fatos alegados pelo autor, sob pena de presunção de veracidade.   

O principal argumento constitucional para esse mecanismo é o princípio do contraditório (art. 5º, LV, CF), que exige que as partes sejam informadas de todos os atos praticados no processo para poderem reagir àqueles em que houver interesse processual. Em síntese, o contraditório obriga a comunicação dos atos para possibilitar a reação. Mas se há dúvida quanto à efetiva comunicação, a mesma garantia exige que ao réu seja nomeado curador para defesa de seus interesses.

Outro caso de nomeação do curador especial está contida no mesmo inciso II, mas não está ligada à citação presumida e, sim, à hipótese de réu preso. Em casos tais, mesmo que citado pessoalmente, a sua condição não lhe permite as providências que tomaria caso estivesse em liberdade, como contratar advogado, reunir documentos etc., num autêntico caso de hipossuficiência que exige do Estado a mencionada providência.

Hipótese rara, mas interessante, surgiu recentemente na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça: o réu foi citado pessoalmente, mas foi preso no transcorrer do prazo para contestação.

Numa primeira leitura a nomeação de curador especial deveria ser afastada, já que a citação se deu pessoalmente e o réu só foi privado de sua liberdade após o início da contagem do prazo para contestação. Esse foi o entendimento do juiz de primeiro grau e do Tribunal de Justiça do Paraná.  

Porém, acertadamente, a Quarta Turma do STJ (REsp nº 1032722-PR, j. 27/08/2012) entendeu que a prisão posterior à citação pessoal “atrai” a nomeação do curador especial, porque embora não se enquadre exatamente nas hipóteses do art. 9º, o caso concreto demonstra uma flagrante diminuição do poder do réu de defender-se, já que privado de sua liberdade. A prisão posterior foi compreendida pelo STJ como “caso fortuito“ que indica uma interpretação diferenciada do dispositivo em comento.

04 setembro 2012

Interceptação telefônica no processo civil: admissibilidade excepcional

A Lei nº 9.296/96 autoriza a realização de interceptação telefônica no âmbito penal, desde que a ordem emane de juiz competente e tenha sido requerida pela autoridade policial (na investigação criminal) ou pelo representante do Ministério Público (tanto na investigação quanto na instrução penal). Para tanto, o requerente deve demonstrar indícios razoáveis de autoria ou participação na infração, a excepcionalidade da interceptação e que o fato investigado constitua infração punida com pena de reclusão.

Percebe-se claramente que a intenção do legislador foi permitir essa medida excepcional – que também pode atingir o fluxo de comunicações em sistemas de informática – apenas para o ambiente penal, em sede de procedimento investigatório ou em juízo.

No entanto, em julgado de 2011 (HC 203.405-MS) o Superior Tribunal de Justiça reconheceu que a medida também pode ser aplicada ao processo civil. No caso concreto, o juiz da 4ª Vara de Família de Campo Grande autorizou a quebra de sigilo telefônico de um pai que ocultou o filho menor, frustrando as várias ordens de busca e apreensão emanadas daquele juízo. O tribunal fundamentou que, embora a discussão se dê em âmbito cível, há fortes indícios também da prática do delito previsto no art. 237, do ECA.

O caso chegou ao STJ porque os responsáveis pelo cumprimento da ordem do juízo de primeiro grau questionaram a possibilidade de aplicação da Lei nº 9.296/96 no processo civil. Receosos de que sua recusa pudesse incorrer em crime de desobediência, impetraram habeas corpus junto ao Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul, que negou a ordem sob o argumento de que a interceptação na seara extrapenal é possível, “quando nenhuma outra diligência puder ser adotada, mormente quando há possibilidade de se averiguar o possível cometimento do delito disposto no art. 237, do ECA”.

Ponderou, ainda, que se de um lado está o direito à intimidade daqueles que terão seu sigilo quebrado, de outro existe a necessidade de se resguardar o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária do menor.

O Superior Tribunal de Justiça negou a ordem por entender que não há nenhum indício de que a liberdade dos impetrantes estivesse ameaçada. Além disso, embora nobres os argumentos que inspiraram o HC, a medida adotada pelos pacientes resguardava direito de terceiro, ou seja, do pai que oculta o filho e se recusa a cumprir as ordens de busca e apreensão.

Porém, o que mais interessa neste ensaio é a decisão do STJ que reconheceu a possibilidade de aplicação da interceptação telefônica no âmbito cível, utilizando-se do argumento de que “há que se proceder à ponderação dos interesses constitucionais em conflito, sem que se possa estabelecer, a priori, que a garantia do sigilo deva ter preponderância”.

Ao adotar esse posicionamento o STJ acolhe tese levantada por Luiz Guilherme Marinoni desde o início da década de 1990, quando defendia a aplicação do princípio da proporcionalidade, surgido no direito alemão, para justificar a admissão de provas ilícitas no processo, desde que dois direitos dignos de tutela estivessem em colisão. Defende o processualista que em casos tais impõe-se um “balanceamento dos valores em jogo”, para que o dogma da inadmissibilidade absoluta das provas ilícitas (art. 5º, LVI, CF) não prejudique outros direitos igualmente garantidos na Constituição.

Nos termos defendidos por Marinoni, a aceitação de uma prova ilícita depende de um fator preponderante: “ser o único meio de realização de valores dignos de proteção em confronto de outros também merecedores de tutela, como, por exemplo, o direito à intimidade”. Trata-se, em suas palavras, de um estado de necessidade processual (In: Novas linhas do processo civil, RT, 1993, p. 169-170).

A decisão do STJ está em consonância com a tese, embora não se discuta a licitude da interceptação, garantida pela Lei nº 9.296/96. O que se poderia discutir é sua aplicação no processo civil, mas não havendo outro meio disponível para a descoberta de informações, a medida extrema se impõe. Ademais porque no caso concreto há a necessidade de ponderar dois valores constitucionalmente garantidos: o direito à intimidade do pai e os direitos fundamentais do menor.

Nessa ponderação deve-se levar em conta que o Estado deve promover, com prioridade absoluta, a proteção dos direitos fundamentais da criança e do adolescente (art. 227, CF). Logo, no caso em análise, é um valor que deve prevalecer ao da preservação da intimidade.

Essa realidade pode parecer estranha aos mais acostumados com o formalismo do direito processual. No entanto, uma interpretação sistemática de todo o fenômeno legitima essa possibilidade. Aliás, é uma tendência no processo civil brasileiro, porque o Projeto do novo CPC acolhe a possibilidade de admitir-se até mesmo a prova ilícita em caráter excepcional: “A inadmissibilidade das provas obtidas por meio ilícito será apreciada pelo juiz á luz da ponderação dos princípios e dos direitos fundamentais envolvidos” (parágrafo único, art. 257).